Autobiografia alimentar

por | 28 de agosto de 2024 | Bem-estar, Nutrição

Por Giana Sprada e Gracemary Medeiros Schneider

O cheiro de café recém passado é um anúncio do que vem em seguida. Não demora e logo ouço meu pai gritado a plenos pulmões: “Está pronto!”. O chamado vem do galpão, onde meu pai e meus irmãos estão preparando as vacas para a ordenha. Um pouco de leite já está na vasilha para posterior consumo. O leite é apenas para consumo da família, não é comercializado. Mas uma parte importante do leite é reservada, ainda na vaca por assim dizer. 

Uma segunda vez, meu pai deixa que o terneiro sugue um pouco de leite para que o “leite mais gordo desça”, diz ele. É o apojo, o leite mais consistente da vaca, e especial para a delícia anunciada pelo aroma do café. 

Junto a minha mãe, eu levando um açucareiro e, ela, algumas canecas e o bule com o café fresquinho, chegamos ao galpão. Meu irmão abre o portão e pega as canecas e as coloca numa pequena e rústica prateleira montada num canto estratégico. Alcanço o açucareiro para minha mãe, que logo se põe a colocar uma colherada em cada caneca e em seguida verte o café fumegante em cada uma delas. Apenas um pouco, menos de meia xícara, pois o café é bem forte. 

Um por um, nos colocamos em posição para tirar o leite diretamente na caneca com café, que a cada jato de leite vai ficando cremoso, com cor de café com leite e com uma espuma também cremosa por cima. Quando pequena eu gostava de “comer” essa espuma com uma colher, mas conforme fui crescendo, passei a apreciar o conjunto, cada gole composto por aquele café cremoso com aquela espuma também cremosa do “camargo” de todas as manhãs. 

Mais do que uma atividade diária, era (e, é) um momento em família, quando eram discutidos e acordados os planos para o dia, eram relembrados causos antigos ou recentes. Um momento de confraternização e planejamento. 

Crescer no interior, numa casa simples, de madeira, sem energia elétrica e sem água encanada, me trouxe algumas experiências e histórias interessantes e quase todas elas envolvem, de alguma maneira, o alimento, a refeição. 

Depois do “ritual matinal” que envolvia a ordenha de uma ou duas vacas e, a deliciosa caneca de camargo, é momento de preparar o café da manhã. 

Minha mãe coloca um ou dois pedaços de lenha no fogão para atiçar o fogo, pega uma grande panela de ferro sobre a chapa (só a panela poderia render muitas histórias) e, quanto ela está quente, uma colher de banha de porco é colocada em seu interior. 

Assim que a banha derrete, ela junta algumas conchadas de feijão (que sobrou do dia anterior). Logo que abre fervura, ela polvilha um pouco de farinha de biju (farinha de milho em flocos) por cima e mexe rapidamente, formando um pirão úmido e saboroso, que chamamos de “virado de feijão”. 

Para acompanhar, minha mãe serve couve refogada. Couve esta que foi recém-colhida na sua horta. Após uma cuidadosa limpeza nas folhas, minha mãe as enrola firmemente e as corta finamente, e, então, a refoga rapidamente para servir com o virado de feijão. Café com leite sem açúcar, pão e doce de leite caseiros completam a refeição. 

Num instante estamos todos (meu pai, minha mãe, meus dois irmãos, minhas três irmãs e eu) reunidos envolta da mesa, e muito alegremente compartilhamos aquela refeição reforçada, pois há muitos afazeres que exigem uma boa reserva de energia pela frente. 

O dia segue, sempre muito movimentado e alegre, seja atendendo o gado, conferindo a integridade das cercas, capinando a lavoura, lavando roupa no rio, cumprindo as tarefas domésticas, brincando e correndo pela grama. Mas certamente, os momentos ao redor da mesa são sempre marcantes e repletos de carinho e acolhimento. 

Lembro, claramente de minha avó cortando feijão de vagem para o almoço. Para mim, que não devia ter mais de cinco anos, pareciam que eram cortados milimetricamente iguais, em pequenos pedaços diagonais de, não mais de meio centímetro cada um. Lembro-me que olhava com muita admiração e me questionava: “como ela consegue cortar todos iguais?”. Minha avó dizia: “devemos tratar dos alimentos com carinho e respeito. Comida é algo muito sagrado!”. 

Mas isso não significava que não podíamos nos divertir enquanto isso! Quando era hora de sovar a massa do pão, minha avó ou minha mãe, sempre separavam um pequeno pedaço de massa (que minhas mãos dessem conta) para que eu as ajudasse na tarefa. Para mim, era acima de tudo uma grande diversão, além de estar “ajudando” minha mãe ou minha avó e aprendendo ao mesmo tempo. 

Então, sobre a mesa, colocávamos nossa massa de pão e começávamos o processo de sova. Minha avó dizia “precisa sovar, até que a massa solte pum!”. E, conforme a tarefa de sovar a massa ia avançando, logo começávamos a ouvir pequenos estouros vindos das bolhas de ar que se formavam na massa durante o processo. Lembro do sorriso dela e das minhas risadas, encantada com aquela dinâmica. Era hora da massa descansar e crescer. 

Quando chegava o momento de pôr o pão na forma, mais uma vez eu recebia um pequeno pedaço de massa. Era hora de soltar a imaginação!! Bonecos, caracóis, ursos, corações ou minipãezinhos surgiam. Eu tinha total liberdade de criação! E na hora que saiam do forno, é claro que era uma comemoração só! Comer aqueles pães especiais e compartilhá-los com minha família, tornava tudo ainda mais incrível! 

Como disse, o alimento e as refeições sempre tiveram um espaço central em minha infância. E muitas das minhas memórias estão relacionadas a isso. 

Lembro-me com clareza, a ponto de sentir o aroma que emergia das panelas e travessas sobre a mesa, de como meu pai montava seu prato (e eu, o copiava). Primeiro, ele se servia de uma concha generosa de feijão preto, com o garfo ele amassava os grãos e os misturava com o caldo fumegante que os acompanhava. Em seguida, era hora de juntar um pouco de farinha de biju (só o suficiente para que o caldo do feijão fosse absorvido, mas mantendo-se úmido). Acomodava essa mistura no fundo do prato e sobre ela, ele colocava duas colheradas bem fartas de arroz, e o acompanhamento que tivesse, fosse carne, ovos, couve ou repolho refogados e mais algum legume que tivesse à disposição. Por fim, uma porção de salada (a que tivesse na mesa). Pronto! Era só apreciar cada garfada! 

Esse fato me desperta a memória de outro prato que eu replicava quando devia ter por volta de oito anos. Tempos depois, minha mãe descobriu, antes mesmo que eu tivesse percebido isso, que de fato eu não gostava muito daquela preparação, mas eu a comia por causa da minha irmã, pela admiração que tinha dela. 

Mas vamos ao prato em questão! Tratava-se de polenta de “caroço” com café, leite e açúcar. Essa polenta de “caroço” era a polenta que minha mãe preparava, seja porque ela dizia não acertar a polenta lisinha e mole, seja porque era a preferência dela, de meu pai, enfim da família, é a mesma polenta feita com fubá. Só que a proporção de água em relação à farinha de milho é diferente da polenta tradicional, já que ela fica mais “seca” e forma diversos grumos ou “caroços” por assim dizer. 

Minha mãe a preparava na panela de ferro (a mesma do virado de feijão do café da manhã), normalmente era servida no jantar. Às vezes com um molho simples de carne moída ou picadinha, mas sempre com a opção do café com leite (já que o café passado em coador de pano estava sempre presente nas refeições). 

Então minha irmã colocava um pouco de polenta no prato dela e um pouco no meu (eu sentava bem ao lado dela), em seguida, polvilhava um pouco de açúcar e juntava um pouco do café fumegante, depois era a vez do leite. Pronto! Era só degustar. Me recordo de gostar daquele sabor, ao mesmo tempo, levemente doce e salgado que se espalhava pela boca ao mastigar aqueles grumos macios da polenta misturados com o café. De fato, não era minha primeira escolha, mas porque eu queria ser como minha irmã eu fazia questão de comer aquela refeição. 

É meio da tarde. Meu pai vem lá do galpão após ter finalizado alguma tarefa. É hora de fazer um lanche. No dia anterior, ele deixou um pouco do leite separado, numa vasilha de vidro especial para esse fim. É verão, então o calor é o ajudante ideal para que esse leite se torne uma coalhada. Agora, a coalhada já está pronta e, como já temos geladeira, também está geladinha. 

Meu pai pega um prato fundo, duas colheres e os coloca sobre a mesa. Pega a coalhada e a lata da farinha de biju e me chama: “filha, que tal uma coalhada?”. Mais que depressa, corro para lavar minhas mãos e me coloco sentada ao seu lado, pego uma das colheres e muito alegremente, dividimos aquele prato. Era nosso momento, meu e de meu pai (meus irmãos não gostavam muito de coalhada). Então eu aproveitava cada colherada em sua companhia. 

Comidas simples, preparadas no dia ou reaproveitadas do dia anterior, e em sua maioria produzida ali mesmo, naquela propriedade rural. O leite, os ovos, o feijão, a carne, a banha, as saladas e legumes, o milho, a pipoca (ah a pipoca!) tudo plantado e colhido pela nossa família. 

Lembro-me, que plantávamos um pequeno trecho de milho-pipoca, pois era algo que nossa família gostava muito de comer, especialmente em dias chuvosos. Depois de colhidas as espigas, nós as descascávamos, mas não destacávamos completamente as cascas da espiga, pois essa palha remanescente ia servir para amarrar as espigas numa espécie de varal onde o milho-pipoca ia secar completamente, e por estar livre da palha que o envolvia, ficava mais protegido contra os carunchos do milho. 

Quando já estavam secas o suficiente, debulhávamos as espigas de pipoca e as armazenávamos em vidros bem fechados. E quando era dia de pipoca, era vez daquela velha panela de ferro voltar para a chapa do fogão! Como a família era grande, minha mãe chegava a fazer quatro ou cinco panelas de pipoca! Era uma festa! Mas mais especial ainda era quando ela separava um pouco da pipoca para fazer caramelada! As pipocas depois de estouradas, se reuniam em grupos deliciosos envoltos por um caramelo dourado e docinho na medida certa! Era uma diversão só! Uma delícia de lembrança.  

Um ponto marcante das manhãs de domingo era o café da manhã, que diferente dos dias de semana, não tinha o costumeiro virado de feijão ou de ovo, mas tinha bolinho pingado! 

Minha mãe colocava a velha panela de ferro sobre a chapa quente do fogão à lenha e enquanto a banha de porco derretia e aquecia em seu interior, ela preparava a massa numa bacia amarela. Assim, que a banha estava na temperatura certa, ela começava a criação das mais diversas e incríveis figuras! 

Cada colherada da massa que era, delicadamente, pingada na banha quente se tornava um bolinho macio no interior de uma casquinha fina com extremidades crocantes. Conforme a massa escorregava para dentro da panela e fritava, ia assumindo diversas formas que, depois de retiradas da panela e postas na tigela, iam direto para as nossas mãos ansiosas. Mas, antes de dar a primeira mordida, fazíamos a análise da figura formada, que podia ser um cavalo-marinho, um dinossauro, uma galinha, um urso ou qualquer coisa que nossa imaginação permitisse. 

Muito do que sou hoje é resultado das vivências que tive ao redor da mesa, da preparação do alimento ou em função dele. O alimento, não raras vezes é o centro das relações sociais, é muitas vezes a razão pela qual se levanta todos os dias e se põe a trabalhar. O alimento, sem dúvidas, tem um importante papel, não apenas na manutenção biológica da vida, mas na formação das relações vividas.