Do preconceito à (falsa) racionalidade etarista?

por | 11 de setembro de 2024 | Iniciativas de inclusão, Vida e Carreira

Por Yumara Vasconcelos

As visões negativas da idade se apresentam tão enraizadas na sociedade que sequer percebemos as nossas atitudes e comportamentos etaristas.  

O processo de envelhecimento é nutrido por associações depreciativas e marcadamente capacitistas,  ao ponto de afetar a relação do sujeito com o próprio corpo e estilo de vida, e com aquele do outro (sujeito indeterminado), em um movimento de captura de seu campo de subjetividade. As visões negativas se ancoram nestas correlações. 

A pessoa considerada, de fato ou socialmente, ‘velha’ tem a sua existência reduzida e relacionada à: carência (de afetos e cuidado), improdutividade, adoecimento, feiura, absenteísmo, preguiça, descompromisso, fadiga, exaustão emocional, impontualidade, resistência ao ‘novo’, lentidão, dependência física, tristeza, desânimo, desatualização, analfabetismo digital,  retrogressão, incapacidade,  desmotivação, finitude,  decrepitude, declínio, risco acidentário, necessidade de assistência, perda de memória, deterioração cognitiva por razões diversas, doença de Alzheimer (transtorno neurodegenerativo), incluindo-se nesta lista (não exaustiva) sintomas neuropsiquiátricos 

Como adverte a autora Flávia Maria de Paula Soares, “Há uma tendência cultural atual de se pensar que as psicopatologias são inerentes ao processo de envelhecimento que caracterizam a velhice.” (Soares, 2020, p.12) 

Não é incomum escutarmos falas do tipo:  

  • “Essa roupa ficou ridícula nessa mulher. Será que ela não se enxerga?”;  
  • “Você não tem idade pra isso!”; 
  • “Esse trabalho não lhe serve mais.”; 
  • “Se eu fosse mais novo (nova) …” 
  • “Será que essa mulher não sente vergonha de usar biquini?”; 
  • “… é a vovó (ou o vovô) do escritório”; 
  • “Esse garoto com essa velha? Só pode ser por dinheiro!”; 
  • “Que corpo horrível?”. 

A nossa autovisão é contaminada e comprometida com a visão de pessoas estranhas ao nosso convívio. São numerosos os rótulos aos quais as pessoas mais velhas são alvos. As etiquetas, fruto da (des)classificação social do ‘velho’, determinam escolhas, trajetórias, experiências e lugares.  

Envelhecer, na sociedade brasileira, nos coloca em um lugar de desprestígio (desvalor) e, em muitos casos, de desamparo afetivo, o que dificulta sobremaneira o desenvolvimento de uma atitude positiva frente à velhice. O processo de envelhecimento é socialmente desnaturalizado. De fato, “Em uma sociedade na qual o jovem é supervalorizado, há pouco lugar para o velho.” (Winandy, 2021, p.25) 

No ambiente de trabalho, os estigmas ganham uma conotação capacitista, interditando profissionalmente as pessoas mais velhas, impedindo-as de acessar oportunidades interessantes. Essa interdição laboral tende a evoluir para o status de transição de função (um ritual sutil de passagem), culminando no desligamento definitivo. Naturalmente, as organizações lidam de modo diferente com o envelhecimento de seus empregados e empregadas. 

Além de lidar com o envelhecimento cronológico e a proximidade da idade que, juntamente com o tempo de contribuição, dão início à “velhice burocrática” (parâmetros para concessão da aposentadoria), o(a) trabalhador(a) se vê obrigado(a) a experenciar o ‘envelhecimento social no ambiente corporativo’, que descarta pessoas à revelia de suas competências. Na ausência da estabilidade convencional, qual seja, aquela prevista em instrumento coletivo do trabalho, trabalhadores(as) são desligados(as) na proximidade do período aquisitivo da aposentadoria. 

As razões para a ‘aposentadoria profissional compulsória’ decretada pelo empregador, em muitos casos, guarda relação direta com a generalização da pessoa idosa (ou daquela classificada como tal). Produz-se, então, a concepção de um “indivíduo fictício” para justificar a invisibilidade de pautas e a exclusão social dessa parcela da população.  

O envelhecimento é uma experiência individual, inclusive, fortemente racializada e atravessada pela status ou posição social ocupada pela pessoa que envelhece (estrutura de classe).  

Os eufemismos que suavizam a velhice não traduzem a totalidade das realidades e condições. A ‘melhor idade’, por certo, é um estado hipotético que não alcança a todos. As expectativas e os padrões, propostos pela sociedade  às pessoas mais velhas, são recorrentemente superados pela realidade, que se apresenta diversa, complexa e atravessada por muitas questões (raça, gênero, classe social etc.).  

O envelhecimento social repercute na vida de trabalhadores e trabalhadoras como um recuo forçado no espaço profissional, afetando a sua autoestima, a capacidade de autodeterminação sobre os rumos da própria vida, a sua subsistência, os seus relacionamentos e interações dentro e fora do ambiente laboral, comprometendo especialmente a sua saúde mental.  

Encerro esse texto com uma provocação reflexiva: Se envelhecer é inerente ao nosso ciclo de vida, o que determina a sua desnaturalização e o sentimento de aversão e medo que alimenta a resistência e o preconceito?  A experiência parece óbvia, mas precisamos pensar a respeito para desconstruir esses gatilhos. 

“Nenhum homem que vive muito tempo escapa à velhice; é um fenômeno inelutável e irreversível.” (Beauvoir, 2018, local. 598) 

Ah! Sobre o título … A racionalidade não dispensa a razão e o preconceito não tem sustentação lógica. 

Yumara Lúcia Vasconcelos é pós doutora em Direitos humanos (UFPE- Universidade Federal de Pernambuco), doutora em Administração (UFBA- Universidade Federal da Bahia), mestre em Ciências Contábeis (Fundação Visconde de Cairu), bacharela em Direito e Ciências Contábeis. Especialidades na área jurídica: Direito civil e em Filosofia e Teoria do Direito.